quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Dr. Fulano de Tal

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendia a amar depois — Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

                  Coelho sai!
                  Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:

                  Roseira dá-me uma rosa
                  Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão…)

De repente
              nos longes da noite
                                         um sino

Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues sempre achava que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo

Rua da União…
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a rua da Saudade…
                           …onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da rua da Aurora…
                           …onde se ia pescar escondido

Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
                        Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
         Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
                   Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
            que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
        Ovos frescos e baratos
        Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo…

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
          Ao passo que nós
          O que fazemos
          É macaquear
          A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam

Recife…
       Rua da União…
                                  A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife…
       Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô

MANUEL BANDEIRA. Evocação do Recife. p. 54–56. In: Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

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